Casa-Estúdio Carlos Relvas
 
 

O caso da Casa Relvas - MNAA 2003

exposição "Carlos Relvas e a Casa da Fotografia". Museu Nacional de Arte Antiga Comissários: Vitória Mesquita e José Pessoa. Produção IPM, Divisão de Documentação Fotográfica

O CASO DA CASA RELVAS
EXPRESSO/Revista de 05-07-2003

Uma grande exposição de Carlos Relvas apresenta o espólio fotográfico da sua Casa-Museu da Golegã

Carlos Relvas foi certamente um fotógrafo mais interessante do que algumas anteriores avaliações críticas admitiam. Mas não é de modo algum um desconhecido. A sua Casa-Museu na Golegã, sediada no luxuoso chalet-estúdio que mandou construir em 1872, esteve aberta ao público entre 1981 e 96, encerrando por imperiosa necessidade de obras. A reabilitação, que lhe devolveu a configuração anterior a ter servido também de habitação do fotógrafo (feita sob a direcção do IPPAR e dos arquitectos Vítor Mestre e Sofia Aleixo), está finalmente concluída; aguarda-se agora que surjam apoios e meios para um programa adequado ao mais bem conservado estúdio fotográfico de final de Oitocentos.

Em 1984, António Pedro Vicente dedicou-lhe uma monografia (Imprensa Nacional). Em 1989, os Encontros de Coimbra expuseram fotografias pertencentes à colecção deste autor. Duas mostras antológicas (84 e 92) confrontaram-no com os seus pares. A história de António Sena (Porto Editora, 1998) faz-lhe 40 referências e continua a ser a única possibilidade de compreender a obra e a acção de Relvas no seu tempo.

A mostra que o Instituto Português de Museus apresenta no Museu de Arte Antiga, aguardada desde 98, não é ainda uma retrospectiva, mas constitui um importante contributo para se ir conhecendo melhor a obra de Relvas. Os seus autores, Vitória Mesquita e José Pessoa, da Divisão de Documentação Fotográfica do IPM (e antes responsáveis pelo ex-Arquivo Nacional de Fotografia, absorvido em 97 pelo Centro Português de Fotografia), optaram por trabalhar apenas com o espólio da Casa-Museu, cujo tratamento e inventário vêm realizando a partir de 96, graças a um protocolo entre a autarquia e o Instituto.

Apresentam o maior número de provas de autor já alguma vez expostas, mais de uma centena, incluindo 78 fototipias de peças da Exposição de Arte Ornamental (1882), e também cerca de 200 reimpressões actuais dos negativos encontrados no estúdio da Golegã, sobreviventes à venda em 1897 de grande parte do respectivo acervo.

Constituindo uma aproximação arquivística ao espólio de Relvas, as provas agora produzidas servem para o divulgar e poderão suprir lacunas que venham a reconhecer-se no universo das provas de autor, fornecendo material abundante para a exposição permanente da Casa-Museu, quando esta reabrir, e para mostras itinerantes que se dediquem ao fotógrafo (provas raras só se expõem em condições especiais).

Uma exposição da obra de Relvas, realizada com o rigor que a fotografia exige, teria de partir de uma pesquisa exaustiva em colecções privadas e públicas, da escolha das melhores provas de época e de autor que se localizassem, da apresentação dos seus álbuns e das reproduções (fotomecânicas ou tipográficas) em catálogos e outras publicações, valorizando o facto de ter sido um pioneiro da fototipia, um activíssimo salonista e um militante das primeiras associações de fotógrafos. Existem álbuns fotográficos na Casa dos Patudos de Alpiarça; haverá retratos na Fundação da Casa de Bragança e decerto no Palácio da Ajuda; devem sobreviver os originais que enviou à Société Française de Photographie. Só um coleccionador particular possui mais de duas centenas de originais. Material não falta. São essas provas que tornam possíveis outras mostras - colectivas, internacionais, temáticas - que porão a sua obra em circulação. Os comissários da mostra têm outro entendimento, que se discutirá adiante. Aliás, já o CPF se deixara seduzir pela invenção de «inéditos» de Aurélio Paz dos Reis, com fantasiosos critérios.

Carlos Relvas (1838-94) foi um abastado lavrador ribatejano e fidalgo da Casa Real que se dedicou à fotografia como amador e teve também uma afirmativa presença social como cavaleiro tauromáquico, desportista, inventor e benemérito. Seria interessante abordá-lo nessa pluralidade de aspectos, sem esquecer o agricultor interessado em modernizar a produção, que levava vinhos e fotografias às mesmas exposições internacionais. Os numerosos auto-retratos, como toureiro, «jockey», fotógrafo, fidalgo, campino, camponês, etc., ilustram essa galeria de identidades, para além de revelarem um exacerbado narcisismo. Entretanto, seria oportuno averiguar se a falta de interesse fotográfico pela modernidade do seu tempo (os comboios, a arquitectura do ferro, as máquinas agrícolas, etc.) confirma a aparente dicotomia entre o empresário, «sportsman» e inventor e, por outro lado, o gosto tradicionalista das imagens que mais imprimiu.

Na obra exposta, as paisagens têm um lugar de destaque, romanticamente melancólicas e de um realismo de inspiração pictural, sendo outras, de lugares povoados, de grande interesse documental. O património é objecto de um trabalho com qualidade, embora outros tenham feitos os levantamentos metódicos (Emílio Biel). Como notas próprias surgem o interesse pelos retratos de animais e pelos barcos, sendo de grande beleza sensual alguns retratos femininos. Os tipos populares encenados em estúdio fixam uma ideologia que permaneceu no folclorismo naturalista do seu amigo Malhoa. Entretanto, no itinerário da mostra, o pequeno espaço dedicado ao processo da fototipia, com ensaios originais e provas de cor das impressões em tinta tipográfica, é um momento forte sobre um aspecto marcante da sua acção.

No catálogo, o historiador André Rouillé procede à mais correcta leitura da obra de Relvas, situando o seu culto da fotografia e da glória pessoal num tempo em que se tinham multiplicado os profissionais e se banalizava o consumo das imagens mecânicas. Aponta-o como «um homem dividido entre a sua província e a Europa, entre as tradições e a modernidade, entre a sua proximidade com as pessoas e coisas e a sua vontade de poder», sem ceder à tentação de o mitificar.

II
Questões de fundo e de superfícies

Porque esta exposição é «um contributo e um impulso para repor Carlos Relvas no lugar que lhe é devido na história da fotografia», vale a pena tentar que uma futura retrospectiva trilhe caminhos de maior rigor.

Afirmam os autores que se recuperam «muitas (imagens de Portugal) totalmente inéditas». É impossível prová-lo, excepto quanto à edição em livro, que é só uma das formas da circulação da fotografia; não constam dos negativos marcas de virgindade e pouco sabemos das provas impressas que existem ou se perderam. Mas «eis que chegamos a uma questão de fundo», adiantam os comissários, prevendo objecções.

Ao contrário do que pretendem, um fotógrafo do século XIX (ou XX) conhece-se e avalia-se através das provas que imprimiu ou fez imprimir e das que divulgou por meios fotomecânicos, não através dos «inéditos» que se produzam hoje. Aquelas provas chegaram até nós (mais ou menos marcadas pelo tempo, como sucede com a pintura) ou não sobreviveram. Não sabemos, senão por comparação com provas existentes, se e como imprimiria os negativos, mediante que processos, em que formatos, com que viragens (modificações de cor), com que sacrifícios de definição ou integralidade das chapas, etc. Os negativos estereoscópicos, que fornecem imagens duplas para visão em relevo, podem dar lugar, ou não, a ampliações únicas; as provas coladas como «carte de visite» ou «retrato álbum» (também de tipos pitorescos e de animais) ou as tiragens de exposição em grande formato são objectos diferentes, implicando distintos entendimentos e destinos da fotografia, e outras alternativas se colocam, além da diferença das qualidades visuais que resulta do uso de modernos papéis e produtos químicos.

Ao dizerem os comissários que «cada negativo é uma espécie de partitura que, como na música, pode ser bem ou mal interpretada», omitem que a metáfora se deve a Ansel Adams (1902-1984), que também foi pianista, e se refere às suas reimpressões tardias, ao modificar (por sinal, para pior) opções anteriores quanto a formatos, contrastes, etc. - Szarkowski provou-o na retrospectiva do centenário, escolhendo as primeiras provas.

Ao pretender que é só de índole mercantil a questão das tiragens de época («vintage prints», se foram contemporâneas da tomada de vistas) ou de autor (se mais tardias, reconhecidas e controladas pelo próprio, porventura ditas definitivas), entramos no terreno da mistificação - e enquanto o Estado imprime, os particulares coleccionam e exportam originais. Ela continua em citações de Cartier-Bresson, Man Ray e Doisneau, que descrevem as respectivas relações com a câmara escura e não interessam ao assunto. Aliás, Cartier-Bresson tem sido um acérrimo opositor à produção de «inéditos» de obras históricas e tomou precauções para se defender de tais práticas.

Reunindo, sem nítida distinção espacial ou sem molduras de diferentes cores, as albuminas e fototipias de Relvas e as reimpressões modernas, a exposição confunde o visitante desprevenido, mas comprova, para o observador atento, a diferença entre a infinita gama de variações tonais alcançada pelas primeiras e a dureza dos contrastes nas recentes, onde o branco perde toda a densidade matérica e o preto se torna um buraco indistinto. Algumas montagens em cartões decorados, as impressões recortadas em oval ou isolando um motivo entre contornos esfumados mostram-nos diversas condições de visibilidade das imagens e o gosto social que veiculam.

No catálogo (55?), é escandalosa a ausência de medidas das provas antigas e dos negativos das impressões modernas. Os desacertos de cores com que se reproduzem as primeiras e a monotonia das novas impressões a sépia excessivamente contrastadas somam-se à indiferença com que se desrespeitam as escalas dos originais. E é absurda a classificação como «Género» do capítulo final, que inclui fotografias de observação documental e de viagem, muitas de grande interesse.

Tratando-se de um trabalho dedicado só ao espólio da Golegã, choca a ausência de dados sobre a sua história recente; cita-se a doação à autarquia, em 78, mas não a abertura da Casa-Museu em Novembro de 81 com uma exposição dita retrospectiva, nem a atenção que a imprensa dedicou a Relvas e à degradação do estúdio (o EXPRESSO publicou importantes artigos de Rui Cabral, em 14-XI-81, e de António Henriques, em 24-I-96 e 16-III-98). É inaceitável a falta de uma descrição do acervo, para além dos números totais (4174 negativos de colódio e 6604 de gelatina brometo de prata; 146 provas em albumina, 1656 fototipos). A não apresentação dos catálogos, periódicos e livros em que colaborou bem como do inventário da extensa biblioteca de Relvas são lacunas que sugerem a ocultação de informações.

Existem, por último, notórias insuficiências no estudo da obra, trocando-se a abordagem crítica e comparativa por levianos encómios: «Bravo, Relvas, atingiste os teus, nossos objectivos!», «C.R. demonstra o que, às vezes, é Portugal.» O Álbum da Exposição de 1882 não foi um catálogo moderno, classificação que tem a ver com a problemática das atribuições, e, embora muito notável, segue o modelo das edições comemorativas; entretanto, as justas objecções de Joaquim de Vasconcelos sobre o seu preço inacessível (A. Sena, História...) têm uma resposta absurda. Os êxitos internacionais, no quadro histórico que se segue à era dos pioneiros, têm de ser vistos em termos sociológicos, conhecendo-se a crescente irrelevância artística dos salões, paralela aos da pintura que foi justamente esquecida. Carlos Relvas merece ser lembrado, visto e estudado.

Fonte: EXPRESSO/Revista de 05-07-2003 (Artigo da autoria de Alexandre Pomar

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